Tuesday, October 27, 2009

O Seguro


Um texto que escrevi há uns tempos, perdido num domingo depressivo à tarde (um tipo morto, escreve uma carta de reclamação à companhia de seguros que não pagou à sua esposa o prémio do seguro de vida em causa).

Exmos. Senhores,

Venho por este meio, na condição de morto desde já sublinho, expressar a minha profunda indignação com a conduta irresponsável, execrável e arrepiante que vossas senhorias decidiram adoptar para com a minha pessoa - ainda que, indirectamente.

Durante anos a fio, paguei religiosamente (que já agora, e como vêem, não me serviu de muito ser religioso) aquilo que eu, enquanto pessoa de bem e cumpridora, e suas senhorias comigo acordaram como o preço justo para a minha morte futura. Anos a fio! Dinheiro que podia ter utilizado em tanta coisa. Não ouvimos nunca os outros dizer que a vida é curta e que para lá de Marraquexe só há areia. Pois bem, têm nesta carta um desalmado (literalmente) segurado que para além de ter poupado para a morte, nada agora deixou. Quando a minha mulher morrer com que cara é que a vou encarar, digam-me suas senhorias?

Para a cova não se leva nada. Até o fato do enterro, comprei-o em segredo anos antes. A minha mulher perguntava-me porque é que não podia mandar o fato fora. Respondia-lhe que tinha um valor sentimental. Ela lá desistiu. Na carta que deixei, disse-lhe que aquele era o fato a utilizar para efeitos fúnebres. Abanou a cabeça inconsolável, mas respeitou a minha vontade. Por tudo isto, e muitas mais coisas passei. Só porque fui eu a terminar com a minha vida, dizem vós, do alto das vossas torres que a minha mulher não tem direito a nada. Sabia que não tinha direito a arrepender-me depois de tomar uma decisão destas, mas vocês conseguiram mesmo assim, garantir, que um homem não pode descansar descansado.

E levo assim esta vida, aliás, esta morte, à espera que a minha mulher morra e me dê um raspanete. Uma semana antes de morrer, um amigo tinha ido fazer um exame à próstata. Disse-me ele que estava um homem guardado para aos 76 anos ser enrabado. Metáforas à parte e para além da frustração, deixais-me vós assim, em posição de quem perdeu a guerra, logo eu, que nem costela alemã tenho.

Solicito por fim, que reavaliem a minha situação, que deixam um homem na sua pretensa paz e que pela primeira vez, tendo em conta a força das circunstâncias, deixem um morto sossegado. Neste caixão, nem voltas dou, bem se veja.

Melhores Cumprimentos

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