Sunday, December 13, 2009

Cartas Soltas - Medo do escuro


A morte tenta marcar consulta num psicólogo, para deixar de ter medo no escuro.

"Senhor Doutor,

Pretendo com esta carta antes de mais, sensibilizá-lo para a realidade que me prende e atormenta numa voraz vontade de viver a vida como outro conceito qualquer. A sociedade em que o doutor se insere, foi a que mais se desenvolveu na compreensão de fenómenos tortuosos. Diga-se de passagem, que foi também, a que mais se esforçou para os desenvolver e aplicar. De qualquer forma, esta introdução serve para explicar que o meu pedido vai no sentido de lhe mostrar que falo verdade e que não se trata de nenhuma brincadeira. Até à data, nenhum dos seus colegas acreditou nas minhas sinceras palavras. E deste problema doutor, tenho que me livrar.

Ora, por estranho que pareça, eu, a morte, tenho medo do escuro. Bem sei, que à luz de todas as percepções que a sociedade tem de mim, isto é no mínimo, um paradoxo. Mas eu não tenho culpa que me associem a uma coisa má. Eu não sou boa nem má. Nem vou buscar ninguém de barco. Nem tão pouco peguei numa foice na vida. Mesmo que uma coisa desses existisse, imagine a sujeira que não seria, levar as pessoas para o outro lado, ceifadas como se diz. Bem sei que é uma metáfora, mas mesmo assim, é um exagero de todo o tamanho. Portanto, como qualquer outra coisa que habita este mundo, tenho os meus medos e as minhas incertezas. O escuro é uma delas, e segundo percebo, é possível através dos vossos estudos, compreender este medo e fazer com que ele desapareça. Só peço um pouco mais de qualidade de vida. Já sei o que é que está a pensar. A morte a pedir qualidade de vida. É um paradoxo, bem sei. Mas se eu existo, estou viva. Compreende o meu drama? Estar vivo, não é o contrário de estar morto no meu caso. Aí tem doutor, uma coisa para pensar, vocês que tanto gostam de reflectir sobre tudo e mais alguma coisa. Eu, na minha simples existência, só quero perder este medo. Pensando bem e voltando atrás, se calhar estar morto é o contrário de existir, faz mais sentido. Assim podem incluir-me nestas vossas tiradas pitorescas.

Tendo tudo em conta, compreenda o meu sufoco, e guarde meia-hora do seu dia para mim. Bem sei que me dedicará uma eternidade daqui a uns anos, mas por agora, preciso só de meia-horinha durante umas semanas.

Certa da sua sensibilidade, aguardo notícias suas. De uma forma ou de outra, falaremos um dia (isto não foi uma ameaça doutor, a vida é mesmo assim, ou melhor, a morte é mesmo assim.. bom, como quiser, só não quero ferir a sua sensibilidade).

Cumprimentos,
A Morte"

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