Friday, March 19, 2010

Alienação


Vivemos num País onde o Estado actua de forma pesada sobre praticamente todos os aspectos da nossa vida. É uma herança da Revolução de Abril, e só não é mais grave, ironicamente, por culpa do próprio Estado, que se especializou em fazer investimentos sem retorno para a economia. Vendo o défice a subir e os credores a dizer que é preciso ter cuidado senão a festa acaba mais cedo, o Estado é obrigado a vender participações que tem em empresas (o que até considero positivo), desmaterializando assim, a sua asfixiante presença - a propósito, em 2011, teremos mais disto.

A população em geral, distante e alienada do que se passa à sua volta, concentrada no sensacionalismo e formando a sua opinião com base em telejornais piores que um folhetim de século dezoito, considera que a não presença do Estado na economia significa o abominável fim das suas vidas.

Esta relação paternalista, onde normalmente a exclusividade da culpa é atribuída ao Estado, tem grande parte da sua força na sociedade. Vivemos em tempos democráticos, votamos em quem queremos, e ao que parece não existe manipulação eleitoral. Nós elegemos os nossos líderes sem ter uma pistola apontada à cabeça. O problema é que tomamos essa decisão e discutimos o tema atribuindo-lhe a mesma importância de um jogo de futebol. Aliás, há jogos de futebol mais importantes que votações democráticas.

A prova viva desta alienação quase colectiva (que conduz a uma desresponsabilização individual em todas as áreas) é a qualidade de intervenção do cidadão anónimo. Perca dez minutos (sim porque vai perde-los, desde já aviso) do seu tempo a ler as caixas de comentários na internet de uma publicação de circulação considerável (Público, Expresso, etc..). Não havendo estudos sobre a matéria (que eu conheça pelo menos), da minha experiência concluo, que a maior parte da opinião expressa nestes locais, baseia-se na generalização simples e patética, vagueando entre redundâncias e disparates. Uma ou outra vez, a coisa termina em troca de insultos.

Identifiquei um motivo que me parece válido e que justifica este problema de opinião (que degenera depois numa participação cívica medíocre): naturalmente, as pessoas gostam de falar sobre os mais diversos temas e ter uma opinião. Mesmo que não saibam bem do que estão a falar. Os meios de comunicação social, que precisam de audiências para (sobre)viver, compreenderam muito bem esta dinâmica. Utilizam esquemas nas mensagens que transmitem, permitindo ao leitor/telespectador formar uma opinião de forma rápida. É uma espécie de curso intensivo diário. A pessoa chega ao fim, sente-se informada, mas na verdade, não consegue argumentar sobre praticamente nenhum assunto que acabou de ouvir ou ler. Pelo menos, de forma construtiva, não sendo de admirar portanto, o constante bota-abaixo que corre o País de norte a sul.

Dois exemplos concretos.

Há algumas semanas a maior parte dos jornais e telejornais veiculou este título: "Taxa de juro para empréstimos à habitação mais cara"
O anónimo cidadão, habituado a tirar conclusões rápidas e erradas, concluiu de imediato que a taxa Euribor tinha acabado de subir e que iria pagar um valor maior de prestação mensal ao seu banco no final do mês. De seguida, o mesmo cidadão, desinformado e alienado, começa a falar mal dos bancos, do governo, do poder de compra, do ordenado baixo e por aí fora. Na realidade, este título referia-se aos novos empréstimos, ou seja, às pessoas que vão pedir novos empréstimos para comprar casa, nas mesmas condições das pessoas que compraram casa há um ano, ser-lhes-à atribuído um spread mais alto. Repare como um simples título, consegue subverter a ideia original - e verdadeira já agora - despoletando uma indignação virulenta por parte do leitor/telespectador passivo, que nem sequer é afectado pela matéria em causa.

O outro exemplo tem menos de vinte e quatro horas: "PJ faz buscas à PJ"
Como pode reparar o título indicia uma aura de desorganização. O cidadão alienado que eu atrás referia, de imediato se ri, abana a cabeça e termina a sua detalhada análise com a famosa frase (que devia ser banida) "Só neste País". Está plenamente convencido que as instituições funcionam mal e que por algum motivo estranho a polícia faz buscas à polícia. Pensa se calhar que os colegas do primeiro andar fizeram buscas no segundo andar ou coisa que o valha. Neste exemplo, a notícia refere-se a uma ordem dada por um juiz no âmbito do caso Face Oculta que suspeitou existirem fugas de informação a partir de um departamento da PJ. Se é a própria PJ o órgão responsável por conduzir buscas, terá que ser a própria a fazê-lo, ainda que isso signifique investigar uma parte das suas instalações. Isto é banal em muitos países, e alguns deles, como é o caso dos Estados Unidos têm departamentos dedicados exclusivamente à investigação dentro de portas, os Internal Affairs.

As pessoas têm legitimidade para expressarem o seu desagrado, mas enquanto não o fizerem de uma forma séria e construtiva, ninguém as levará a sério, leia-se, os nossos políticos.

Esta formação de opinião baseada em parangonas, leva os nossos decisores a pensar que têm carta branca para fazer o que bem lhes apetecer. Se as pessoas não compreendem verdadeiramente a essência dos problemas e daquilo que está em causa, não conseguem tomar decisões minimamente fundamentadas.

O aumento da qualidade do nível de vida fica assim dependente do nível generalizado de esclarecimento.

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